sábado, 2 de novembro de 2013

Querida Helen

          Querida Helen, eu te amei como um homem ama uma mulher mesmo após 50, 60 anos de casados. Eu te acompanhei como os guarda-chuvas acompanham os pingos da garoa fina. Eu te contemplei como um artista plástico contempla sua escultura depois de pronta. E, ainda assim, eu te perdi  mais uma vez como alguém perde os grãos de areia que escapam por entre os dedos durante uma ventania.
          Quando tuas palavras que tomei emprestadas deixaram de sair da minha própria garganta, juro que, por uns 10 minutos, pude assistir ao mar enlouquecendo de fúria enquanto voltavas para tua cidade, para tua família e para o teu esconderijo na árvore (aquele sobre o qual me contastes durante certa tempestade). Nem mesmo a natureza suporta a visão das tuas costas lisas e os cabelos presos num coque frouxo e desalinhado a partirem em direção a uma rodoviária qualquer e deixarem para trás uma caixa emperrada e lotada de cartas rasgadas no fundo do quintal. 
          Eu poderia ter corrido atrás dos teus encantos e implorado para que levasses a caixa, a coleção de LP dos Beatles e o anel que te dei. Quem sabe teus olhos até encontrassem os meus e, um pouco contrariados, aceitassem voltar para casa, receber o anel de volta e reler todas as cartas de amor de um escritor nem tão romântico assim (depois de dar um jeito na trava emperrada, certamente). 
          Eu poderia, sim. Mas não foi isso que fiz. Estava escrito na contracapa do nosso livro que os teus caminhos desviariam dos meus e, dessa infeliz encruzilhada, eu encontraria minha verdadeira sina. É, pois é. Estava escrito, porque o fogo que os teus dedos delicados atearam lá em casa não deixou nem sinal dele. 
          Querida Helen, foi somente depois de uma garrafa de vinho barato e alguns rabiscos no guardanapo que cheguei à conclusão de que nossas estradas já se afastaram há muito tempo. Envio-te esta carta na esperança de que ao menos esta não seja rasgada. 
           Querida Helen, tu és um objeto inanimado que, vez ou outra, chega para me destruir.