quarta-feira, 26 de abril de 2017

Contagem

          O objetivo do texto que hoje sai nesta página é não ter objetivo algum. Deixo que o lápis guie a mão, e não o contrário. As palavras que emanam da ponta do grafite hoje são livres, são autônomas, estão soltas no mundo para ser quem quiserem - como eu. Como eu, estão na metade do caminho e precisam ser descobertas antes que fique escuro, antes que fique tarde, antes que fique mudo. O que mancha a página hoje não quer dizer nada enquanto tenta exprimir algo. Não quer só preencher mais um pedaço de papel com palavras apagadas com pouca precisão e um pequeno rasgo no canto superior direito. 5, 4, 3, 2, 1. Fui longe demais correndo das perspectivas e acabei num beco sem saída. Well, well, well. Voltemos ao início, então. Voltemos aos livros de História empoeirados e dispostos na mesma arte desde que chegaram à casa junto com os moradores. Falemos sobre livrarias reformadas que perdem o eixo e bagunçam nossos hábitos. Discutamos a respeito da mutabilidade do ar que preenche o espaço entre nossas cabeças. E não tentemos chegar à conclusão alguma. 1, 2, 3, 4, 5. Isso não quer dizer nada, é claro. Quer apenas correr com os lobos. As orações saem da ponta dos dedos e chocam-se com as pequenas partículas cor de marfim. E esse é um falso limite. Depois delas há ainda camadas e camadas de terra até o cerne ou camadas e camadas desse mesmo ar que não para de nos reorientar. 5, 4, 3, 2, 1. Transpareçamos nossa admiração aos fogos de artifício que sobem ao céu às seis horas da tarde. Gritemos em almofadas só porque nos foi dito que isso alivia a tensão. Ralhemos com todos em pensamento ao descobrir que não existe amparo. E não acreditemos em nenhum ponto final. 1, 2, 3, 4, 5. O que eu sei é que em algum lugar alguém agora caminha no corredor de uma loja sem saber que encontra-se diante do símbolo da experiência pré-ruína. Alguém agora pergunta-se como os prédios sobrevivem a isso toda vez. Alguém agora pergunta-se qual é o objetivo desses vocábulos todos juntos formando tamanho desarranjo. 5, 4, 3, 2, 1. Aceitemos: nenhum. 

terça-feira, 18 de abril de 2017

Desculpas

          Peço desculpas a você que chegou junto com as minhas relutâncias. A você que me ofereceu um futuro divergente deste que construo há tanto tempo, a você que me convidou para conhecer o outro lado da cidade e da vida. Ninguém te avisou do quanto eu era decidida, ninguém te contou que meu nome está costurado em outro lugar, ninguém te informou que minha playlist é um memorial. Incoerentemente, você apareceu logo quando a minha decisão era tanta que abriu espaço para a hesitação.
           Peço desculpas a você também que nem chegou ainda, mas que já tem até nome. A você que vai fazer um breve relato da sua vida e esperar para ouvir o meu, a você que vai tentar demolir o memorial, a você que vai me ensinar a me lançar. Ninguém te alertou sobre os calendários, as avenidas e as estações.
           Peço desculpas a você que me chama a atenção todos os dias e descansa os olhos em algum outro lugar que não os meus.
       

Memória recente?

          Vou lhe falar sobre corredores desertos. Sobre álcool. Sobre uma criança em choque. Hoje vou escrever sobre um futuro naufragado graças a um jantar fora de casa. 
          A parte de mim que é sensata quer se calar. A que é cansada quer desesperadamente telefonar para alguém e despejar mares de injustiças presentes no mundo. A que quer se calar quer também acreditar que é tudo passado, que isso já não causa mais sequer uma onda. A que segura o telefone a meio caminho da orelha está sentindo a água batendo no casco do barco.
          Isso não vai me deixar em paz.
          Isso não vai me deixar em paz.
          Não vai me deixar 
          em paz.
          Anos e séculos e milênios e eras de fios de cabelo caindo no chão desde que isso aconteceu pela primeira vez. E anos e séculos e milênios e eras desde que o futuro começou a desandar.
          Tinha uma criança sozinha no quarto naquele dia. Tinha um teor alcoólico no sangue dele naquele dia. Tinha um adeus à aurora naquele dia. Só não tinha voz alguma para impedir.
          Tinha uma menina sozinha na sala naquele outro dia. Tinha uma escada comprida afastando a sala do resto da casa naquele outro dia. Tinha uma família inteira no andar de baixo naquele outro dia. Só não tinha voz alguma para impedir.
          O silêncio. Os flashes. A incompreensão. A dúvida. A revolta. A injustiça. O grito. O choro. Não houve uma terceira vez. O que houve foi uma infinidade de invasões dos efeitos em outras situações em que eles não eram bem-vindos. Era pra ter sido de outro jeito. Não era pra ter sido assim.
          Que bom pra você que o seu cérebro te ajudou a esquecer. O meu só faz lembrar. O meu só sabe atrair o choque do que foram aqueles dias. Só sabe se frustrar diante da vista de terra firme ficando para trás toda vez que o barco volta para o mar turbulento que são essas memórias que, apesar de antigas, de tanto tornar a bater no casco ainda considero recentes.