terça-feira, 18 de abril de 2017

Memória recente?

          Vou lhe falar sobre corredores desertos. Sobre álcool. Sobre uma criança em choque. Hoje vou escrever sobre um futuro naufragado graças a um jantar fora de casa. 
          A parte de mim que é sensata quer se calar. A que é cansada quer desesperadamente telefonar para alguém e despejar mares de injustiças presentes no mundo. A que quer se calar quer também acreditar que é tudo passado, que isso já não causa mais sequer uma onda. A que segura o telefone a meio caminho da orelha está sentindo a água batendo no casco do barco.
          Isso não vai me deixar em paz.
          Isso não vai me deixar em paz.
          Não vai me deixar 
          em paz.
          Anos e séculos e milênios e eras de fios de cabelo caindo no chão desde que isso aconteceu pela primeira vez. E anos e séculos e milênios e eras desde que o futuro começou a desandar.
          Tinha uma criança sozinha no quarto naquele dia. Tinha um teor alcoólico no sangue dele naquele dia. Tinha um adeus à aurora naquele dia. Só não tinha voz alguma para impedir.
          Tinha uma menina sozinha na sala naquele outro dia. Tinha uma escada comprida afastando a sala do resto da casa naquele outro dia. Tinha uma família inteira no andar de baixo naquele outro dia. Só não tinha voz alguma para impedir.
          O silêncio. Os flashes. A incompreensão. A dúvida. A revolta. A injustiça. O grito. O choro. Não houve uma terceira vez. O que houve foi uma infinidade de invasões dos efeitos em outras situações em que eles não eram bem-vindos. Era pra ter sido de outro jeito. Não era pra ter sido assim.
          Que bom pra você que o seu cérebro te ajudou a esquecer. O meu só faz lembrar. O meu só sabe atrair o choque do que foram aqueles dias. Só sabe se frustrar diante da vista de terra firme ficando para trás toda vez que o barco volta para o mar turbulento que são essas memórias que, apesar de antigas, de tanto tornar a bater no casco ainda considero recentes.

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