terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Paisagem às sete horas

          Há quase uma semana, uma leitura sobre textos visuais me ensurdeceu por mais ou menos 2 minutos e não ouvi a voz no trem me avisando que chegávamos à Estação Pinheiros. À minha volta, pessoas pediam passagem e desembarcavam, deixando para trás um trem vazio. O papel em minhas mãos prendia minha atenção e não me dava permissão para desviar os olhos. Seguimos. Quando, finalmente, tive de virar a página e respirar um pouco mais, dei uma rápida olhada no vagão. Estranho, pensei. Hoje todos vão para o Eldorado. Quebrando minha estúpida ingenuidade, a voz se pronunciou novamente. Espere, ela disse que a próxima estação é a Cidade Universitária? Imediatamente comecei a calcular quantos minutos me atrasaria para a faculdade. Às 6h40, encontrava-me na plataforma oposta observando um céu bem claro, umas plantas bem verdes e outras pessoas bem intrigantes. Quem é essa gente que embarca na Cidade Universitária, que vem deste outro canto para ir para o lugar de onde vim? Senti-me uma intrusa admirando a vista dos outros, uma estranha aspirando o ar destinado aos que possuem licença para contemplar aquela porção do Rio Pinheiros, aquela porção de vegetação que veste a margem e aquela porção da plataforma tão estranha para os meus pés. 
        Coisa curiosa essa, a rotina. Acostumei-me aos reflexos mecânicos de andar pela cidade que há 19 anos chamo de minha, fazendo com que o ato de observar uma paisagem antes das 7 horas da manhã fosse um acontecimento extraordinário. Naquele dia, cheguei atrasada na faculdade e, para não ficar mais vinte minutos numa fila de elevador, subi 11 lances de escada. Eu teria ficado extremamente mal-humorada por ter começado o dia já com uma atividade aeróbica que poderia ter sido evitada com um pouquinho mais de atenção à voz no trem, mas não fiquei. Naquele dia, gastei 10 minutos da manhã cantarolando uma música qualquer diante de um céu bem claro, de umas plantas bem verdes e de outras pessoas bem intrigantes. 
         Naquele dia, uma leitura minuciosa me levou a experimentar novas vistas, novos ares. Uma distração me encaminhou para um sinal de mudanças, para um trecho de desconhecidas jornadas, para um vislumbre de futuras andanças. Naquele dia, uma breve surdez me salvou de viver mais um dia ininterruptamente comum. Uma breve surdez me obrigou a desacelerar, a desabilitar os reflexos involuntários, a explorar um exemplar de porvires. Há quase uma semana, tenho voluntariamente vivido.

Em homenagem aos textos visuais e ao pano de fundo de minhas epifanias,
deixo aqui uma pertinente amostra de ambos.




terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Sobre adiamentos e magnetismo

          Algum dia encontrarei palavras para iniciar um primeiro capítulo daquilo que ensaio há tanto tempo, mas não hoje. Hoje vou sentar e escrever sobre a mesma coisa de sempre, vou manchar um caderno com discursos diretos e impulsos secretos. Permito-me adiar por mais um tempo essa missão, permito-me provar desta euforia que é mergulhar uma vez mais no conhecido prazer de dissecar os ímpetos. Escrevo. Há uma corrente magnética que me põe do avesso e expõe meu âmago para o mundo, para ser entregue aos tapas, para ser entregue à vida agitada de uma cidade que acomoda lembranças atemporais. Escrevo uma vez mais sobre lembranças porque é disso que meu ser é feito, é disso que minha existência descende. Hoje vou sentar e escrever sobre como sonho com uma ideia que ainda nem mesmo chegou ao papel. Vou sentar e escrever sobre caminhos já percorridos, sobre recomeços e entranhas expostas. Algum dia encontrarei palavras para apresentar ao mundo minhas intenções viscerais, mas não hoje.
           Hoje eu vou apenas sentar e escrever.