sexta-feira, 31 de março de 2017

Fantasmas que se cruzam

            A cidade é um cemitério. 
          Não importa a direção para qual eu me volte, sempre encontro amigos que poderiam me cativar, cafeterias onde eu poderia ser cliente assídua, avenidas que poderiam me contar mais histórias e amores que poderiam ser os meus. 
          A cidade abriga milhares de situações de "poderiam ter sido". Os fantasmas dessas realidades contrastantes perambulam bem à nossa frente no metrô. Eles falam ao celular, leem um livro com a capa amassada e tentam se equilibrar no vagão, assim como nós. De vez em quando, trocamos olhares. Dentro de mim há sempre a pergunta: "será que?". Será que se nós começarmos a conversar agora, o rumo da minha vida será diferente? Será que todas as minhas histórias e todas as histórias dele/dela cairão como um peso ali naquele instante? Será que tudo o que vivi até agora me trouxe a este momento?
         A cidade é uma missa de sétimo dia. Todos procuram superar algo, em qualquer lugar. Todos choram a morte do momento que já findou, da oportunidade que já passou, do amor que já partiu. Todos que cruzam o nosso caminho estão usando preto e andando com pesar. Todos têm um motivo para não querer cruzar a soleira da porta de casa. 
          Mas cruzam.
          Mas ousam.
          Mas seguem.
          A cidade é um cemitério onde cada um é uma aparição para o outro.

sábado, 25 de março de 2017

Ratos e trilhos e trens e luzes e você

Hoje vi um ratinho no trilho do trem
Quando o trem se aproximou, ele correu e sumiu
Queria ser assim
Quando sentisse a pancada chegando, fugisse
Mas não sou
Sou o contrário
Quando sinto o trem chegando, eu corro e apareço
Bem no meio do trilho
Bem na frente das luzes
Bem na sua mira

domingo, 19 de março de 2017

Autossabotagem

            A minha consciência é vacilante.
          Às vezes, quando penso que ninguém está vendo, sou eu mesma e ajo de acordo com meu arbítrio. No resto do tempo, faço bobagens para me conformar. É nesses lapsos de dignidade que acabo trocando a felicidade simples ao lado de alguém por uma vida de intermináveis questionamentos a respeito da justiça do mundo. É nesses lapsos de decoro que sou novamente aquela criança de 9 anos guardando um segredo que, mais tarde, me destruiria. É nesses lapsos de amor-próprio que acabo trocando a opção de curso para agradar aos outros e colecionando algumas aprovações, mas, novamente, infeliz. Ou, ainda, é quando chega a terça-feira e digo que não tenho nada a dizer ao mundo, mas, na verdade, tenho. A minha consciência é vacilante, é hesitante, é resignada. Ao mesmo tempo em que aprende facilmente a sorrir de si mesma, demora a aprender a tomar decisões acertadas. Num instante está serena e, no outro, enlouquecida. E aqui estou eu, nesta solidão de uma criança que acaba de libertar um passarinho. Nesta solidão de quem espera um desenrolar diferente desta vez.
          A pessoa que se autossabota não vê a infelicidade hasteando a bandeira. Ela irrefletidamente acredita que está tomando a melhor decisão até que, uns minutos ou horas ou dias ou meses ou anos depois, percebe que naufragou.
         A pessoa que se autossabota não espera que vá mudar de ideia e acredita estar no meio de um ato de coragem. "Vou correr este risco." Ela se acovarda diante das próprias vontades e considera-se corajosa. A pessoa que se autossabota é contraditória, antitética.
      A autossabotagem chega em silêncio para depois fazer um grande estardalhaço e jogar tudo para o ar. Chega em silêncio escondendo quem é e se maquiando de impavidez. Chega em silêncio para, no fim, causar uma histérica comoção.
        A minha consciência é humana. Costuma cultivar algumas ideias equivocadas a respeito de si mesma. Tranca-se insistentemente num labirinto e grita para todos que consegue sair de lá sozinha. Grita para todos que está feliz com as suas escolhas até que, repentinamente, não consegue mais sair.

terça-feira, 7 de março de 2017

Quantas vidas cabem nesta?

           Quero viver infinitas vidas, mas estou presa a esta. Não raro me pego pensando na imensidão de coisas distintas que quero fazer ao mesmo tempo. São tantas essas coisas que fico indecisa sobre quais quero realizar nesta vida e quais postergar para outras - se houver.
          O meu desejo é viver mil vidas nesta aqui, por isso virei escritora. Há uma parte de mim que se vê de blazer preto e unhas feitas tomando um café com um autor e fechando negócios para a editora. Do mesmo modo, uma outra parte desta minha hesitante existência quer correr por um hospital dizendo que tem cirurgia marcada para as três e meia. Há, ainda, mais uma fatia que quer vestir uma camisa branca de manhã e entrar na sala de aula para ensinar literatura. Quantas vidas cabem nesta? Um pedaço de mim grita por um escritório e textos para revisar, a outra clama por um laboratório onde fazer pesquisas sobre a psique humana. Um dos fragmentos do meu ser quer dar aulas de redação para adolescentes no processo de escolha profissional, o outro se desespera por não saber, ele mesmo, escolher.
          Quantas vidas cabem nesta? A pergunta que me anuvia a mente é a mesma que me faz transparecer traços de puro contentamento. É em terças como esta que descubro por que a vida me encaminhou para cá. São onze e vinte e nove agora que escrevo esta sentença e há quase meia hora eu pensava que o dia estava semipleno. Eu falhava em não pontuá-lo com as palavras da abstração semanal. O meu desejo é ser um milhão de pessoas diferentes, ter um milhão de experiências diferentes e vivenciar o meu dia de um milhão de formas diferentes. Quero viver infinitas vidas, mas estou comprometida com esta. Por isso virei escritora.


“Escritores não são exatamente pessoas…
eles são um monte de pessoas tentando ser 
uma pessoa.”
- F. Scott Fitzgerald