terça-feira, 25 de novembro de 2014

Porta da geladeira

          Na porta da geladeira tem o imã com o telefone da farmácia que geralmente segura o papel com as consultas marcadas, mas que hoje segura o bilhete que você deixou. Suas digitais ainda estão prensadas em todas as janelas e estantes e seus trejeitos ainda ressoam pelos ares deste apartamento apertado cheirando a primavera. No bilhete, duas ou três letras arrastadas denunciam sua saída apressada e o espelho embaçado no banheiro me diz que foi recente, assim como suas palavras que, agora, pensando melhor, sempre deram indícios de um espírito livre e fugidio. Seus caminhos refletem o que seus olhos sempre tentaram me avisar e, hoje, sinto o gosto do seu nome em meus lábios como se fosse uma maldição. Tenho em mim milhares de novos perfumes e sonetos, mas nenhum chega a ser tão extenuante quanto os que antes me traziam você. Já faz cinco minutos desde que encontrei a maçaneta da porta molhada e estranhei a disposição dos imãs na geladeira e, desde então, não faço nada além de buscar motivações desesperadas para sua saída. Com seu número em mãos, a paranoia é a mais próxima do que posso chamar de companhia e entrego-me a ela. Entrego-me a ela como se sua ânsia pela liberdade fosse um pensamento recente ou como se uma simples ligação pudesse costurar seus caminhos nos meus. Entrego-me a ela como se maldições não se desfizessem e seus suspiros não me escapassem. Disco três dos nove dígitos que compõem o mantra que repeti toda as setenta ou oitenta mil vezes em que busquei ouvir sua voz  volto a pressionar o telefone no gancho. Entrego agora seus perfumes e sonetos ao vento, esperando que a brisa de novembro seja suficiente para afastar todos eles. 
          Na porta da geladeira, você deixou um bilhete; no bilhete, você deixou uma despedida; mas, no meu peito apertado, você cravou uma única certeza: quando a tenho, tenho-a distante e, quando não tenho, sinto-a comigo na mesma intensidade que quando aqueles sonetos e perfumes me traziam você. 

Um comentário: